'Em um mundo com comida suficiente, 821 milhões ainda passam fome', diz Daniel Balaban, do WFP

Representante do órgão da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a fome falou sobre ações e desafios impostos pela covid-19, detalhou estratégias da instituição e citou a importância da cooperação Brasil-África 

Everton Sylvestre, especial para o De Olho no Campo 

O Diretor e Representante do Centro de Excelência (WFP, na sigla em inglês) contra a Fome Brasil, Daniel Balaban, conversou com o De Olho no Campo sobre o papel que o órgão desenvolve e, especialmente, sobre ações que envolvem Brasil e África e desafios relacionados à alimentação no mundo diante da pandemia. "Em um mundo onde produzimos comida o suficiente para alimentar a todos, 821 milhões de pessoas passam fome" diz Balaban. O órgão atua para difundir estratégias capazes de mudar esse cenário e com foco em intensificar a cooperação internacional. 

O escritório de cooperação do Programa Mundial de Alimentos (WFP) foi fundado em 2011 em parceria com o Governo do Brasil. "Funciona como um hub [ponto central] de troca de conhecimentos, desenvolvimento de capacidades e assistência técnica para apoiar países a atingir o ODS 2 [segundo dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável], um mundo sem fome", destaca Balaban. 

++ INSPIRADA NO BRASIL, ÁFRICA QUER REVOLUCIONAR AGRICULTURA COM CIÊNCIA E TECNOLOGIA

"Nós provemos assistência técnica e serviços de aconselhamento a países da África, Ásia e América Latina, na construção de melhores programas de segurança alimentar e nutricional. Nosso principal foco é o fortalecimentos dos programas nacionais de alimentação escolar". Balaban reforça que a cooperação brasileira com a África é mais ampla do que o trabalho desenvolvido pelo Centro de Excelência e lembra que o papel da instituição não se resume à cooperação do Governo do Brasil com a África. 

Abaixo, a entrevista completa. 

Desde sua fundação, que ações o Centro de Excelência desenvolve?
Prestamos assistência a mais de 40 países em todo o mundo, principalmente na África e na Ásia, para alcançar resultados importantes em seus programas de alimentação escolar e medidas mais amplas de proteção social. Também procuramos incentivar que os países comprem alimentos de agricultores familiares e produtores locais, visando fortalecer a economia do campo e levar produtos mais frescos, saudáveis e nutricionalmente adequados para as refeições nas escolas. Além de buscarmos resultados ligados à capacitação de pessoal e instituições responsáveis pela gestão desses programas.

Somente em 2019, o WFP Centro de Excelência no Brasil apoiou continuamente 10 países da África e da Ásia - Benim, Togo, Gâmbia, Tanzânia, Uganda, Lesoto, Moçambique, Burundi, Nepal, e Armênia - nos seus esforços para alcançar as metas do ODS 2. Ao todo, 60 países já veem benefícios em suas instituições nacionais como resultado do trabalho de capacitação realizado pelo WFP Centro de Excelência. 

Estivemos envolvidos na elaboração de 15 documentos de políticas e leis nacionais, e organizamos dois grandes eventos internacionais sobre alimentação escolar e nutrição. Após cinco anos, o WFP CoE Brasil finalizou o primeiro ciclo de sua parceria com a União Africana, garantindo o compromisso de 54 países africanos na implementação da alimentação escolar sustentável. Já em parceria com o Instituto Brasileiro do Algodão, nosso escritório está apoiando pequenos produtores em 4 países africanos a aumentar o uso de subprodutos de algodão e promover a venda de culturas associadas a programas de alimentação escolar.

Que mudanças práticas as cooperações com a África têm gerado?
Alguns resultados concretos importantes desse trabalho são a adoção de Leis, Políticas ou Estratégias Nacionais de Alimentação Escolar e SAN [segurança alimentar nacional] em diversos países como Bangladesh, Burundi, São Tomé e Príncipe e Quênia. 

Um resultado importante de 2020 foi a mobilização de US$ 16 milhões para um projeto de desenvolvimento rural ligado à alimentação escolar no Gâmbia. Também promovemos a adoção de compras da agricultura familiar nos programas de merenda escolar destes e de outros países parceiros.

É possível mensurar os principais avanços já alcançados no continente?
Nas últimas duas décadas, o continente africano passou por diversas transformações sociais, a população do continente aumentou 69% (1,279 bi - 2017) e a estabilidade social atingida por alguns países proporcionou verdadeiras transformações em alguns setores. 

Devido a esses avanços, os países africanos passaram a demandar modelos de intercâmbio de experiências mais próximas às realidades locais, de modo que a Cooperação Sul-Sul tornou-se um elemento aglutinador e relevante na cooperação para a África. Um exemplo disso foi a política de alimentação escolar, com compras locais de alimentos, que vem sendo implementada pelo Brasil ao longo de décadas e aprimorada nos últimos 20 anos, tornando-se uma referência para diversos governos
africanos no contexto do Direito à Alimentação Adequada e como uma ferramenta para acelerar o
desenvolvimento local, reduzir a fome e distribuir renda.

Qual o impacto dessa contribuição brasileira até o momento e quais as estimativas de impacto
com relação ao ODS 2 da Agenda 2030? 
Em termos de impactos, existe uma heterogeneidade entre os países africanos, de modo que é difícil mensurar um número unificado, já que os países, a seu modo, implementam e adaptam tais estratégias segundo suas condições locais. Mas cabe destacar, por exemplo, as diversas linhas estratégicas que vem se aprovando dentro do contexto da União Africana. A criação do Dia da Alimentação Escolar (1º de Março), por exemplo, é o símbolo máximo da importância desta política para o desenvolvimento socioeconômico no continente, ou ainda o Fortalecimento do Plano de Inocuidade de Alimentos (2014).

O continente africano ainda possui alguns dos cenários mais desafiadores, quando se trata das metas voluntárias estabelecidas pelos ODS, principalmente o ODS 2 (Fome, Segurança Alimentar e Desenvolvimento Rural). Com relação ao papel desempenhado pela cooperação brasileira neste sentido, cabe destacar que a expertise brasileira no âmbito da alimentação, nutrição e desenvolvimento rural significa atuar diretamente nos indicadores mais críticos do ODS2, ainda mais na África onde 20% da população apresenta casos severos de desnutrição e mais de 55% da população é rural. Ou seja, a cooperação brasileira pode ser cada vez mais protagonista nas transformações no continente africano.

Daniel Balaban, chefe do Programa Mundial de Alimentos (WFP) da ONU no Brasil
Daniel Balaban, chefe do Programa Mundial de Alimentos (WFP) da ONU no Brasil. Foto: WFP/Reprodução 

Sobre Cooperação Sul-Sul, além do aspecto positivo de ver técnicas que foram bem-sucedidas aqui sendo replicadas na África, o Brasil tem se beneficiado de que outras maneiras?
Um dos princípios da cooperação Sul-Sul é a troca de experiências e não só o compartilhamento unilateral. Ao desenvolvermos trabalhos em outros países, ampliam-se as variáveis de base, além de incrementar novos materiais e contextos, o que por muitas vezes também acelera processos no que é desenvolvido e validado no Brasil. É o caso, por exemplo das pesquisas agrícolas ou de mineração.

Nosso foco está em estimular o fortalecimento da agricultura familiar em países parceiros através de programas de alimentação escolar. Nesse campo, o Brasil possui estruturas institucionais e programáticas bastante avançadas em relação a vários países com os quais o WFP trabalha, então é uma importante fonte de conhecimentos tanto na gestão e implementação de seus programas de segurança alimentar e nutricional, como em técnicas de agricultura. 

A própria visibilidade desse conhecimento e a alta estima que países estrangeiros têm pelas políticas de segurança alimentar e nutricional no Brasil são resultado da cooperação internacional. Esse reconhecimento gerou uma valorização das nossas políticas de segurança alimentar e nutricional não só por países estrangeiros, mas também reforçou a importância delas dentro do próprio país.

O aumento de produtividade possibilitado por essas técnicas tem se refletido em benefícios diretos para a segurança alimentar dos países em que são aplicados?
Produtividade não necessariamente é a variável mais importante para se validar uma boa prática, visto que a capacidade de adaptação no contexto rural pode vir por meio de práticas de redução direta de custos, ou ainda pelo fortalecimento e diversificação produtiva, ainda mais em locais altamente sensíveis aos fenômenos climáticos. Então, práticas que proporcionem a adaptação de cultivos em diferentes áreas, manejo adequado de pragas e doenças, ou ainda práticas de conservação de solo (como plantio direto) podem significar benefícios maiores e mais duradouros à segurança alimentar dos países.  

Há circunstâncias em alguns desses países em que propriedades agrícolas têm suas produções direcionadas para exportação, ainda que parte da população ainda enfrente escassez de alimentos? Caso sim, quais os impactos e ações necessárias diante disso?
Para começar a responder essa pergunta, considero importante mencionar um ponto: não há real escassez de comida no mundo. Ainda assim, em um mundo onde produzimos comida o suficiente para alimentar a todos, 821 milhões de pessoas passam fome. Esse fenômeno está ligado à falta de acesso a alimentos por uma grande parcela da população mundial, aos altos índices de desperdício e a uma disponibilidade irregular de alimentos em certos locais. Esse é o primeiro ponto e essas são as principais áreas a serem atacadas no combate à fome e à desnutrição.

É importante observar também que a produção mundial de alimentos é pouco diversificada. Mais de 60% das calorias ingeridas pela população advém de quatro culturas: arroz, soja, milho e trigo. Isso contribui fortemente para os altos índices de desnutrição, associados ou não à fome crônica.

Um ponto essencial para o combate à fome por meio do aumento da disponibilidade, variedade e acessibilidade a alimentos é o estímulo aos pequenos produtores, aos agricultores familiares. No Brasil, por exemplo, 80% da comida servida à mesa da população vem da agricultura familiar, não dos grandes produtores do mercado de exportação. Assim, onde há falta de acesso, disponibilidade e variedade de comida, fortalecer o pequeno produtor é essencial. Isso pode ser feito por meio de melhorias na infraestrutura rural (acesso a estradas, energia elétrica, água, armazenamento adequado), pelo compartilhamento de técnicas simples de agricultura, pelo estímulo à formação de cooperativas para conquistar mais mercados, pela facilitação de entrada no mercado local com incentivos legais ou fiscais, entre outros.

Dentro do escopo do trabalho do WFP Centro de Excelência Brasil, ajudamos países a desenvolverem estratégias de compras da agricultura familiar para seus programas de alimentação escolar. Essas estratégias têm dois principais objetivos: aquecer a economia do campo por meio do aumento de renda desses agricultores; e melhorar a segurança alimentar das famílias do campo e dos beneficiários dos programas de alimentação escolar.

A expertise brasileira em agricultura fortalece os meios de produção, enquanto que o WFP, importante comprador de alimentos e um conhecido parceiro dos governos nos programas de alimentação escolar, pode apoiar aos produtores locais no oferecimento de melhores condições de escoamento produtivo, em mercados como a alimentação escolar, evitando, assim, que intermediários ou atravessadores paguem valores muito baixos por estes alimentos.

Diante de todas as mudanças pelas quais estamos passando em função da pandemia: houve interrupções de ações? Novas necessidades que se tornaram evidentes a partir de agora? Já há um panorama dos impactos da pandemia nas ações do Centro de Excelência contra a Fome?
Devido à pandemia do COVID-19, aproximadamente 1,6 bilhão de crianças e jovens estão fora da escola e da universidade. Isso representa 91% dos alunos matriculados em todo o mundo. Segundo dados do WFP, quase 352 milhões de crianças em 172 países não estão recebendo alimentação escolar.

O fornecimento de refeições nas escolas representa um suprimento estável e previsível de alimentos para as crianças, contribuindo para melhorar a nutrição, a saúde e o desempenho acadêmico. Em situações de vulnerabilidade social, a alimentação escolar constitui uma transferência indireta de renda para as famílias, que pode atingir até 10% do orçamento familiar. Com a suspensão das aulas, as famílias vulneráveis ​​são duplamente afetadas pela falta de acesso a alimentos no ambiente escolar, em combinação com a redução de renda causada pelo declínio da atividade econômica.

Como muitas outras agências da ONU e organizações internacionais, o WFP está trabalhando com governos e parceiros para garantir que as crianças em idade escolar e suas famílias continuem recebendo apoio na forma de programas de merenda escolar adaptados (refeições prontas, cestas de alimentos, transferências de renda, etc.) ou através de programas de proteção social relacionados. Até hoje, pelo menos 68 países encontraram maneiras de adaptar sua assistência alimentar a esse novo contexto. Nos países onde as escolas ainda estão abertas, o WFP também está trabalhando com parceiros para melhorar o acesso a água para higienização e outras medidas de saneamento.

Os escritórios do WFP em todo o mundo devem estar prontos para fornecer serviços de consultoria, informação  e apoio operacional aos governos com os quais trabalham. Esses serviços devem servir como orientação sobre como estruturar políticas e programas de segurança alimentar e nutricional, bem como sistemas de proteção social para lidar com os impactos sociais negativos durante e pós pandemia.

Recuperar as perdas e reajustar os sistemas alimentares após elevações nos preços, perda de alimentos, perda de renda para pequenos agricultores e garantir a recuperação de seus mercados também serão pontos fundamentais. Além disso, com sua experiência operacional, o WFP pode ajudar os governos a reestruturar seus mecanismos de entrega de alimentos. O retorno das aulas ao redor do mundo não significará o fim da pandemia e seus riscos associados. Essa crise nos deixará com uma população mundial mais afetada pela fome, desigualdade, desemprego e vulnerabilidade geral. Também implicará negativamente nos resultados educacionais e em muitos problemas nos sistemas de saúde.

Que dificuldades a pandemia impôs ao trabalho do WFP? 
A pandemia e a necessidade de impor medidas de distanciamento social trouxeram dois desafios principais. Primeiro, não podemos trabalhar fisicamente em nosso escritório ou fazer missões a nossos países parceiros. Portanto, precisamos nos adaptar ao trabalho remoto. Em segundo lugar, houve um fechamento massivo de escolas para conter os impactos da pandemia, por isso temos de apoiar os países na transição para modelos de alimentação novos e adaptados.

Em um esforço para adaptar seus programas de alimentação escolar a esse novo contexto global, os países vêm recorrendo a quatro alternativas principais para alcançar os alunos e suas famílias: fornecer transferências de renda, distribuir cestas de alimentos, distribuir porções de alimentos básicos (como arroz) e distribuir refeições prontas.

Temos nos concentrado em advogar pela manutenção da alimentação escolar nos países parceiros, compartilhar as melhores práticas nesses modelos adaptados e estabelecer parcerias para arrecadar fundos para assistência alimentar no Brasil.

Outra ação específica tomada para lidar com os efeitos da pandemia sobre populações em situação de insegurança alimentar é a criação de campanhas de arrecadação de fundos. Atualmente, firmamos parcerias com a rede de supermercados Carrefour e um aplicativo de captação de recursos, o Ribon, para, respectivamente, fornecer vouchers de alimentos a famílias vulneráveis e itens de limpeza para higienizar os kits de merenda escolar no Brasil.